ASJP 24-04-2010
Na guerra do divórcio muitas vezes vale tudo: até mesmo afastar um filho do pai. Em Janeiro, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou uma decisão de retirar uma criança à mãe por esta a ter, deliberadamente, separado do pai. O pai chegou mesmo a ser acusado, sem fundamento, de abusar sexualmente do filho.
O fenómeno sempre existiu, mas nos anos 80 o psiquiatra americano Richard Gardner baptizou-o: alienação parental — filhos manipulados por um progenitor para odiar o outro. Aguilar Cuenca, psicólogo espanhol que se tem dedicado ao tema, estima que aconteça num terço dos divórcios litigiosos. “Normalmente é posto em prática pela mãe contra o pai, já que são as mulheres quem tem a maioria das guardas”, resume ao Expresso.
Em Portugal, os números mostram que a maioria das crianças ficam com as mães quando o casamento acaba. Os dados mais recentes (de 2006) disponibilizados pelo Ministério da Justiça indicam que a maioria (12.214) dos 15-574 menores cuja guarda se decidiu em primeira instância, como é frequente, ficaram com a mãe; 849 ficaram com o pai, 423 em guarda conjunta e os restantes ao cuidado de outros familiares e instituições.
“É muito fácil pôr em prática um processo de alienação parental”, constata a psicóloga Ana Maria Coroado, da Pais Para Sempre, associação que promove o contacto das crianças com os dois pais após o divórcio. Impedir ou dificultar as visitas do pai à criança, interceptar correspondência, desvalorizar ou substituir a figura do progenitor, são algumas das formas usadas para cortar a relação.
“Torna-se uma questão de lealdade para a criança, que não quer magoar a mãe”, sublinha a psicóloga. Surgem ainda queixas de falsos abusos sexuais.
Ninguém fica imune à alienação parental. Nem filhos nem pais. “A principal consequência para a criança é tornar-se órfão de pai vivo, sendo que deixa de conviver com um dos lados da família”, destaca Ana Maria Coroado.
Os dois psicólogos são peremptórios ao afirmar que a melhor forma de combater a alienação parental é não desistir.
“É imperativo denunciar a situação o mais cedo possível”, defende Aguilar Cuenca. Os pais devem recorrer aos tribunais, denunciando os incumprimentos de visita, que têm uma sanção até €249,90 e dão ao pai o direito de pedir uma indemnização a favor do menor.
Mas o maior problema é que o tempo da Justiça não se adapta ao tempo da família. “Neste momento estou a agendar sessões para daqui a dois meses, o que é pouco, mas dois meses é muito para um pai que não vê um filho”, frisa Maria Perquilhas, juíza do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, que tem 700 processos em cima da mesa.
Amanhã é o ‘Dia Internacional de Consciencialização sobre a Alienação Parental’.
No sábado de Páscoa, Pedro Albuquerque levou um ovo de chocolate e um mp4 a cada filha. As meninas, de 8 e 12 anos, não quiseram abrir os presentes e deixaram os sacos à porta de casa. São quase sempre assim os encontros entre pai e filhas. “Vou sempre com a esperança de que elas baixem um pouco as armas”.
A distância começou quando se separou da mulher. “Ficou escrito — no acordo em tribunal — que elas vinham passar um fim-de-semana de 15 em 15 dias com o pai, mas elas nunca vieram”. A princípio ficavam um bocado do dia, mas esse tempo foi diminuindo.
Até ao dia em que Pedro, de 39 anos, foi buscá-las para as férias de Verão. “Eu pensava que o período das férias ia normalizar a relação com as minhas filhas. Fui à porta de casa da mãe, mas ela apareceu e disse que elas não iam”. Foi a única vez que o pai chamou a polícia para registar um incumprimento do direito de visitas.
O afastamento entre Pedro e as duas filhas piorou quando o pai se casou pela segunda vez. A mais velha chegou a dizer a uma psicóloga que tinha sido trocada pela madrasta. “A minha ex-mulher disse-me várias vezes que não queria que as filhas convivessem com a Graça”.
O processo de normalização das visitas já passou entretanto por duas instituições, cuja mediação foi requerida pelo tribunal. Pedro aguarda por uma nova audiência. “Não posso desistir porque são as minhas filhas”.
Durante dois anos Francisco (nome fictício), de 46 anos, enfrentou um duelo com a ex-mulher para ver as filhas. Joana (nome fictício), 42 anos, tentou impedi-lo de ir à escola das crianças, inventou doenças e trabalhos de casa extra, chamou nomes a Francisco à frente das filhas, marcou e desmarcou saídas das menores com o pai.
Esta não é uma versão da história de um casamento que acabou em conflito, são factos dados como provados numa sentença a que o Expresso teve acesso.
As palavras da juíza foram claras: “Em face dos factos que ficaram provados, não temos dúvidas de que a requerente (mãe) iniciou um claro processo de alienação parental”. Mesmo assim — apesar de o pai ter pedido a guarda das crianças —, as meninas continuaram entregues à mãe.
Ao longo de 70 páginas, são reconhecidos os impedimentos levados a cabo pela mãe para que as filhas não convivessem com o pai, que não se acomodou. Não ter desistido é mesmo apontado pela juíza como um factor decisivo para que a alienação parental não fosse levada “às últimas consequências” e as crianças não rejeitassem terminantemente o pai. Porque ele “continuou a insistir em ver e estar com as filhas”, reconhece a magistrada.
Para justificar a decisão, a Juíza evoca a estabilidade das crianças: “Defendo a não-retirada, não por achar que a mãe é melhor guardiã do que o pai mas sim porque as menores estão muito ligadas à mãe. Além disso, estão a viver um período de forte instabilidade que creio que está a ser atenuado aos poucos pela regressão do processo alienador”. Os dois progenitores recorreram. O Tribunal da Relação de Lisboa manteve as crianças com a mãe. Confirmou estar-se perante um processo de alienação parental em regressão, e não em progressão, “o que não põe em causa a saúde e bem-estar das menores”, lê-se no acórdão.
Luís (nome fictício), 39 anos, fez as primeiras visitas ao filho bebé nas escadas do prédio da ex-mulher. O casamento não correu bem e a separação aconteceu ainda durante a gravidez. “Ao fim de uns meses recusei o cenário e tentei, amigavelmente, um esquema de visitas de 15 em 15 dias”.
Pouco tempo depois do acordo em tribunal, Luís foi acusado de abusar sexualmente do filho e a família paterna de maltratar a criança. “Apesar do processo-crime ter sido arquivado ao fim de 8 meses, só voltei a ver o meu filho dois anos depois”. Nessa altura, às quartas e às sextas-feiras, de 15 em 15 dias, ia à escola e a casa da ex-mulher buscar o menino.
Mas nunca conseguiu levá-lo. Os contactos com o filho foram retomados através do Instituto de Reinserção Social, a pedido do tribunal. Uma vez alargadas as visitas, o rapaz começou a manifestar vontade de não ver o pai. Luís ia lá a casa. “Tocava à campainha e diziam-me que o meu filho não me queria ver. Depois chamavam-no e perguntavam-lhe à minha frente, com a mão atravessada na porta, se ele queria ir comigo”. Era enxovalhado pelo filho, que ao fim de 15, 20 minutos vinha à força, com a polícia. Quando chegava ao pé do pai mudava.
“Parecia que estava a desempenhar um papel quando estava com a família materna”. Houve um dia em que Luís não aguentou mais. “O meu filho estava a ser prejudicado por querer estar com o pai. Entendi pôr em standby esta questão até que ele seja mais crescido.” Há 14 meses que pai e filho, agora com 10 anos, não estão juntos.
(Nenhuma das mães contactadas pelo Expresso quis falar).
CAROLINA REIS